quarta-feira, 9 de agosto de 2006

DESPIR AS ÁRVORES

EM S. DOMINGOS


O Ti Agostinho é um homem "amarotado". Quem o afirma é o seu compadre José Maria e não consta que tenha sido algum dia desmentido. No Monte dos Alhos, perto da aldeia de S. Domingos, Agostinho não perde a ocasião de fazer uma piada e quando pode deita-lhe picante. Conta-a e é o primeiro a rir dela, com uma gargalhada para dentro, limpando depois a boca com o lenço que traz debaixo do boné e que às vezes vai ao bolso.


Vive em Foros de Caiada, ali bem perto, tem 75 anos e é o manageiro dos tiradores de cortiça. "O que faz um manageiro?", pergunta quem não sabe. Agostinho responde, mas só por ele e sem hesitar: "Nadinha de nada", de tal modo que nem há "vagar para uma sesta", assegura sem esperar que os outros troquem esse "nada" por miúdos. Mas eles trocam, apesar de quererem "moer" o chefe. "O Ti Agostinho é o capataz, e de primeira", adianta-se António, um homem que veio de Ponte de Sôr ajudar a despir estes sobreiros "amaciados pela maresia" e pelo abrigo do estuário do Sado, numa herdade entre Santiago do Cacém e o Cercal, "propriedade valentíssima", segundo descrição do compadre José Maria.


Passa pouco do meio-dia e meia. O pessoal junta-se num "fogão", nome que se dá naquelas paragens ao sítio onde se come. Cláudia fez arroz de marisco e guisou coelho no lume onde agora ferve a água para o café. Come-se em silêncio, entre pequenas pausas para conversas curtas, quase sempre à volta do tempero. O grupo é grande. "Quinze tiradores, um tractorista, um manageiro, um molheiro (que faz o molho da carga); um marcador (que pinta a data da tiragem em cada tronco); uma taqueira (que apanha as sobras) e uma coqueira, que sou eu." Cláudia segue a lista dos nomes, atribui a cada um uma função e deixa para o fim a sua, como uma espécie de revelação. Porque afinal "a coqueira é a pessoa que cozinha".


Todos pegaram "ao serviço" às oito e hão-de continuar até às seis, depois da pausa de uma hora para almoço e de uma "cervejinha" pelas quatro. Há nove dias que tiram cortiça aos sobreiros com uma machada "tão afiada que até dá para fazer a barba", e a cada pausa afiam a lâmina com uma pedra e a ajuda de água que trazem no "coxo", "tão coxo como o manageiro", ironiza Cláudia continuando o jogo das comparações e indicando o "alguidar" de cortiça à volta do qual se reúne um grupo de tiradores. Amolam as machadas depois do arroz de marisco e do café, de joelho no chão e em gestos que imitam os das lavadeiras num rio. Cada machada custa um dia de trabalho, coisa relativa, que depende do ano e da empreitada. "Este é bom de cortiça, mas o ano passado não deu nada", diz Agostinho, antes de revelar a jorna que por ali se paga. "Falta um euro para serem 20 contos por dia". Mistura moedas mas nunca se engana nas contas. É um manageiro "no último ano de trabalho", diz ele. "Conversa", atiram os outros. Ele ganha mais cinco euros, ou como prefere, "passa quatro euros dos vinte contos", o que "em cinco dias dá..." Os cálculos levam tal rumo que os homens se baralham empoleirados nas árvores, mas cá em baixo ele não se perde nem perde o olho deles.


Os homens tiram a cortiça e Fernanda segue-os, apanhando os tacos, pedaços pequenos que ficam no chão. É prima de Agostinho e taqueira há três dias. Não se queixa do trabalho nem do calor, mas dos cardos que picam as pernas. Andam em "parelhas de dois" e sobem às árvores num equilibrismo de circo, retirando a casca dos troncos onde estão pintados os números "6" ou "7", código a indicar cortiça com dez ou nove anos, a jeito de apanhar.


Despem-na e a árvore deixa a cor cinzenta para passar a amarela, o mesmo amarelo torrado do cereal que cobre o chão, o tom dos bois que ali pastam. Agostinho gosta de ver a cortiça a descolar-se e o som que faz a cair na terra. Gosta também de ver os troncos "assim", em cores às fatias. E como Fernanda, também Soraia, a filha do "primeiro capataz" segue os tiradores, espera que eles saltem dos sobreiros. É a pintora das árvores. Pinta-lhes um novo "6" em tinta nova e sempre "de costas para a chuva, evitando o apagar do tempo", como explica o marido de Cláudia. O "6" que Soraia pinta é a terminação do ano em que se retirou "cortiça de primeira", igual ao pedaço que Agostinho traz nos dedos e manuseia num malabarismo inconsciente, perdido numa conversa de mágoa. É que Agostinho conta piadas, mas também chora. Só que isso nenhum dos homens vê.

Soraia pinta o "6", ano de terminação e hão-de ser contados dez anos a partir desse "6" que Soraia agora pinta, até que venha outro "6". Agostinho olha-a e esquece-se das lágrimas. Vai seguir os homens em mais dez dias a despir árvores porque para o ano logo se vê.

Isabel Lucas